Macumba

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domingo, 22 de dezembro de 2019

Autarquismo 2010


Autarquia desde Aristóteles.

1.      Introdução com objetivo da exposição.

2.      Posição do sábio na sociedade.

3.      Liberdade X finalidade ou pretensão.

4.      Autarquismo na Grécia antiga. Caso Cálicles X Sócrates.

5.      Conclusão. Autarquismo na nova era.



“By now as we both know; we are here not because we are free, we are here because we are not free.” Smith para Neo em matrix 2.[1]



1.      Introdução com objetivo da exposição.

            Aristóteles é tido como um filósofo grego independente, lembrado por sua capacidade analítica, notada em vários campos do saber, além de ter eternizado posicionamentos filosóficos ou existenciais de vários pensadores de sua época. Também consta que foi orientador de Alexandre o Grande, por indicação de seu pai.

            Já no mundo moderno, a ideia de autarquismo é a premissa básica dos conceitos de psicologia, na medida em que para se analisar psicologicamente alguém há que considerá-lo como uma entidade potencialmente plena perante o mundo, ainda que não esteja exercendo tal plenitude.

            A ideia mais simples, e ao mesmo tempo profunda, do autarquismo pode ser expressa pela expressão “funcionar para si”. Ocorre que tal funcionamento é o ponto de alta indagação, tanto que sofreu alteração da época grega até os dias atuais causando visões autárquicas segundo características sociais. Donde surge a seguinte indagação: Se o autarquismo significa um funcionar para si como há espaço para diferentes espécies a depender do tipo de sociedade? Assim é porque a visão/percepção de  mundo do homem é limitada e suas conexões com o mundo vão variar em função disto. Daí, o autarquismo ser mais um caminho tortuoso do que uma doutrina fechada. Tortuoso porque variará de pessoa para pessoa em razão de afetos que cada um possui.

            Vale registrar que além de Aristóteles outros pensadores gregos e escolas helenísticas também se ativeram no desenvolvimento de teorias sobre o autarquismo. Sócrates teria sido uma forte inspiração para esses estudiosos, na medida em que despertou em sua sociedade uma espécie de dissociação entre como Atenas o via e sua autoimagem, em razão de ter aceitado sua execução por motivos distintos daqueles que a motivaram. Isto porque de um lado, o lado do polis, Sócrates merecia execução por negar os valores da polis que participava. Já do lado do Sócrates[2], ele acreditou que estaria dando um exemplo ao mundo dos mortos que mesmo diante da mais alta pena ele manteve sua retidão ética. Ou seja, houve uma dissociação gritante entre as crenças da sociedade face à de Sócrates.

            Então, a linha mestra do presente trabalho é a pretensão de dissecar a evolução do autarquismo da Grécia antiga até hoje.

2.      Posição do Sábio na sociedade.

            A expressão “sábio” é frequentemente utilizada pelos filósofos gregos para designar o que hoje se aproximaria de um intelectual, de uma pessoa altamente ética, ou de uma pessoa que teria compreensão das causas universais, ou seja, qualidades típicas de um filósofo.

            Essas seriam as características encontradas em um filósofo. Mas Aristóteles define ainda como ele deve se comportar socialmente: “De fato, o sábio não deve ser comandado mas comandar, nem deve obedecer a outros, mas a ele deve obedecer quem é menos sábio.”[3].

            Inicialmente cumpre esclarecer que na visão desse autor grego o sábio deve comandar, mas isto não significa que em sua sociedade o sábio comandava, mas, em sua visão, o ideal seria que o sábio comandasse.

            Pois bem, mas o que é comandar? Aristóteles não especifica didaticamente, mas explica que como o sábio conhece as causas mais próximas do “motor primário[4]” do mundo, assim, como ele teria maior discernimento ou controle sobre o funcionamento da realidade lhe caberia tomar as decisões no meio social. Como se vê, seria uma questão com forte marca de comparação: o sábio teria maior responsabilidade social pois teria maior capacidade para resolver questões do mundo do que as outras pessoas que também pudessem decidir, e que, portanto, seriam submissas a ele. Esse parece ser seu raciocínio, mediante leitura sistêmica de outros trechos da metafísica onde ele faz escalonamentos e aponta associações entre trabalhadores e funções ou entre técnicas e aprendizados.

            Já analisando isoladamente a frase transcrita, valem algumas críticas: A “obediência”, segundo Aristóteles, implica que o sábio seja reconhecido[5] como tal pelo meio social, donde se podem imaginar os seguintes panoramas:

·         Sociedade de castas, na qual a casta mais elevada, a do filósofo se prestará ao aprendizado das causas mais universais, motivo pelo qual seus integrantes serão considerados sábios.

·         Sociedade acadêmica, onde os governantes máximos deverão possuir graus ou títulos acadêmicos que justifiquem serem conhecedores das causas mais universais.

·         Ditadura, na qual o ditador se auto intitulará sábio pelas razões “elevadas’ que entender justifiquem a crença da intelectualidade superior.

·         Empresa, na qual os empregados obedecem o dono dela.

            Essas quatro distinções são meramente ilustrativas, pois visam encaixar a obediência dentro dos parâmetros da nossa sociedade. Isto porque ela só faz sentido dentro de um contexto com o outro, grupo ou com a sociedade como um todo. Daí, considerando tal objetividade, a obediência fora do contexto familiar só se justifica em razão de algum vínculo hierárquico. Ocorre que tal vínculo hierárquico não implica em total submissão, como exemplo, o dono da empresa não tem controle sobre a vida marital dos seus empregados, já em sociedade de castas é comum se encontrar o líder com algum tipo de disposição sobre a vida sexual de seus liderados, seja diretamente para ele ou então escolha de nubentes.

            Esse panorama de hierarquia entre as pessoas em razão de uma finalidade técnica aproxima a sociedade de um mundo mais autárquico, onde o homem terá mais chances de desenvolver suas potencialidades. Isto porque o respeito à técnica é em última análise um respeito a alteridade,  respeito ao próximo, ou, em outras palavras, a compreensão de que os outros também têm vontades, o que, em última análise, significa o autarquismo, pois o observador está compreendendo o mundo para a partir daí se adaptar da forma que encontrar mais agradável.

            Atitude oposta seria uma falta de compreensão do mundo, ou uma compreensão vesga(sem a alteridade) de maneira que o observador não se adaptaria segundo seus anseios, mas tentaria se adaptar ao nicho social que ele considerasse mais proveitoso em razão de status, vantagens ou pseudo proteções. Seria, nesse último caso, o estilo de vida pautado por pretensões utilitárias, aquelas de cunho a satisfazer complexos de inferioridade na tentativa de compensar deficiências. Ocorre que mesmo quando o observador alcance tais pretensões ele não consegue suprimir/superar sua deficiência. Pelo contrário, ele perde o eixo de sensibilidade que possui a titulo de ter alguma vantagem, proteção ou status que o tornaria mais “poderoso” socialmente do que outras pessoas comparáveis a ele.

            Vale registrar que a comparação é um sinal de fracasso. Quem compara o faz porque não confia em si, não conhece o autarquismo, ou em casos piores, precisa encontrar alguém em situação mais infeliz que a própria a justificar dentro de uma razão vesga a sua existência. Portanto, repito, para ficar cristalinamente claro, a vontade que o homem tem é o que demonstra se ele funciona para si ou não; e se há comparações apontam que o homem está menos atento ao funcionamento do mundo do que deveria. E estar apartado dessa percepção é fracasso certo na trilha do autarquismo, porquanto esse caminho não pode ser definido como bom ou ruim, prazeroso ou doloroso, certo ou errado, tortuosos ou retilíneo. A sua única definição é algo próximo do sentido de solidão, pois se não for a própria pessoa que desejar o autarquismo ninguém o colocará nesse sentido. Nesse peculiar uma frase resume bastante o que ora se defende: “Deseje o que você quer mais do que qualquer outra pessoa no mundo.”.

            Interessante notar que na Grécia antiga não havia definidamente uma separação entre a vida pessoal ou profissional, ou seja, o núcleo familiar com extrema densidade era uma referência quase que intransponível ao seu membro; e fora dela o grego seria vista segundo a sua função em seu clã ou posteriormente na polis. Daí, por exemplo, os casamentos somente ocorriam segundo tais critérios. Já hoje em dia, nubentes podem não ter entre sua união somente seu status familiar ou seu vínculo com a sociedade.

            Portanto, a compreensão de obediência da Grécia antiga para o mundo atual não é a mesma, pois os parâmetros de mundo são diferentes. Para o grego, seu nome de família fazia parte de sua apresentação como indivíduo, já para o mundo atual existe uma possibilidade de separação pela finalidade, a garantir que o status familiar não seja levado ao ambiente de trabalho ou amoroso. Em outras palavras, o mundo de hoje abre a possibilidade ao indivíduo de ter pelo menos três aspectos de sua vida com funcionamentos separados, o sexual, o profissional e o familiar. Tal liberdade de enfrentamento perante a sociedade não se encaixaria na Grécia antiga que somente aceitava o cidadão sob um aspecto, ou seja, a vida profissional, sexual e familiar deveriam se misturar em todas as interações da vida do grego.

            Em suma, a autarquia da época grega deve ser remodelada ao padrão estético moderno. Isto porque o comandante que interessa ao presente estudo é aquele que conhece suas potencialidades e as administra com boa funcionalidade. Para esse homem autárquico moderno não há que se falar em ser comandado ou, lado outro, comandar outrem, como entendeu Aristóteles. Ademais, em nossa sociedade permeada pelo valor constitucional da isonomia fica difícil em se conceber algum motivo que justifique alguém vir a possuir direito de não ser comandado e somente comandar tendo como único motivo a sapiência. Portanto, comandar e não ser comandado somente “levantando a bandeira, rótulo, título ou status do saber” poderia ser uma pretensão razoável para os gregos, mas para o mundo moderno é absurdo sob o crivo da legislação[6]; e de duvidosa credibilidade sob o ponto de vista moral, pois poucos são os que se conformariam em serem tidos como ignorantes a ponto de, por essa razão, serem liderados por alguém que se considere sábio, em uma relação de “mão única” de educação/comando.

3.      Liberdade X finalidade ou pretensão.

            Viver em autarquismo é ir além de Cronos[7]. É compreender que no mundo tudo é mutável e qualquer tentativa de aprisionar algum valor é ato falho. É compreender que a ciência é limitada e, portanto, indigna de confiança, pois, como se sabe, mais ou menos confiável é não confiável.

            Viver em autarquismo é se afastar de pretensões que não podem de plano ser expostas, porque caso não se possa ser sincero, presente no momento, então sequer se poderá falar na premissa do autarquismo que é a liberdade.

            Daí, devo enveredar pelas desconstruções para poder ser claro, digo utilizar um pouco do nilismo passivo, em ordem a “atacar” o estilo de vida humano. Isto porque a ideia das principais religiões do mundo moderno não se afastou da cultura de resultados: judaísmo, cristianismo, espiritismo, budismo, todas elas projetam uma pretensão a envolver as condutas que defendem, suas doutrinas.

            Na Grécia antiga, não era diferente, no período anterior a polis os mitos gregos defendiam uma vida heroica para que o barqueiro do mundo dos mortos conduzisse a alma para um belo mundo ou ao menos a uma segura estadia. E no período da polis defendia-se uma vida de retidão a garantir uma compatibilidade com alguma ideia de valor superior, como o amor fati dos Estóicos; ou a ideia de bem de Platão, já que a metafísica desta escola/academia colocava o plano da realidade concreta como inferior a um suposto “mundo das ideias”, inacessível ao homem, mas onde ele deveria se inspirar.

            Em relação aos Estóicos, há um ideal de conformação ao destino, mas em conceito de complexa explicação. Para eles o homem deve aceitar o que de bom ou ruim lhe acontece e ainda ser grato a tudo. Ocorre que a principal incompatibilidade dessa elucubração face o autarquismo reside na aceitação ao destino, pois o Estóico guiará suas atitudes segundo uma suposta retidão que eles acreditam possa ser aferida, segundo conceitos éticos. Já para o autarquismo não é possível creditar à ética pilar de retidão, porquanto ainda que se trate de um belo conceito sua aferição no plano concreto relativiza-se. O compromisso do autarquismo vai além de qualquer conceito, inclusive o da ética, pois ainda que o autarquismo, como na ética, pregue atitudes francas e transparentes, lado outro, o autarquismo implica numa constante necessidade de autoafirmação a qual pode desaguar em condutas tidas como antiéticas ou sem retidão, na avaliação dos Estóicos. Em suma, a ética que os Estóicos tanto estudaram e necessária para uma vida de conformação ao destino é um conceito que encerra uma finalidade, a de retidão, de vida digna. Porém tal vida digna, aos olhos do autarquismo encerra um conceito com marca de cultura de resultados; e que pode impor uma limitação inadequada às atitudes do homem em autarquismo.

            No que tange ao legado da academia de Atenas, a ideia de bem constante na parábola da caverna[8] possui várias interpretações. Aquela mais próxima do autarquismo seria a que o “bem’ simboliza a integração dos opostos, ou seja, ver o mundo sob vários ângulos, ou melhor ainda, todos os ângulos possíveis. Por certo, quanto mais visão o homem tiver mais preparado para a vida ele será. Ocorre que a integração de opostos não implica, por si só, em autarquismo. Integrar os opostos é sem dúvida sinal de superação, da melhor superação possível, digna da abordagem de Nietzsche[9] ao tema. Ainda assim, integrar os opostos no sentido da parábola da caverna exprime uma revelação social e não uma integração voltada ao “ser fim para si” do autarquismo. Isto porque a busca de Platão era de uma suposta sabedoria sobre o meio social, mas tal procura não é a mesma do autarquismo, pois esse não tem interesse em integrar opostos do mundo. É que aos olhos do autarquismo o mundo é, de fato, composto de opostos dissociados, mas isso não é problema, até porque nada se pode fazer com quem está satisfeito ou “empacado” em um dos polos. Por isso, o foco do homem autárquico não é resolver/integrar opostos, ainda que se afastar de opostos seja uma trilha natural do autarquismo. A diferença é sútil em teoria, mas na prática é uma vala gigantesca, pois concretamente tentar integrar opostos nada tem a ver com respeitar sua existência, mas se afastar deles.

            No mundo moderno não é substancialmente diferente dos antigos no que tange à cultura de resultados. A educação familiar ou social modernas continuam uníssonas a “adestrar” o homem dentro de uma perspectiva sucesso x fracasso, como se isso pudesse ser aferido culturalmente. Tal educação olvida/ignora uma premissa muito simples, a da diversidade. Nem todos são obrigados a gostar da mesma coisa. Nem todos são obrigados a aplaudir ou vaiar uma peça teatral ao mesmo tempo. O efeito manada, aquele pelo qual o homem se sente seguro quando todos agem da mesma maneira pode parecer convidativo em uma fugaz análise, mas é excludente da liberdade, até porque a manada tende a se volta irascivelmente àquele que escapa de seu paradigma.

            Portanto, voltando “ao fio da meada”, a cultura de resultados tolhe a liberdade do homem, na medida em que o aprisiona a formatações já existentes as quais tem como única finalidade atender à vaidade de quem delas participa. Isso quer dizer que se alguém desejar o belo pela simples explicação que ele é considerado belo, caso essa pessoa consiga possuir tal padrão estético se dará conta que aquela beleza escondia algum padrão sustentado por pretensões alheias. Temos como exemplo clássico deste desejo pelo belo recorrendo aos contos míticos das ninfas. Elas são belíssimas e encantadoras, mas quem as possuir pagará um preço por isto. E, a razão de se ter que pagar tal preço é de uma clareza meridiana: elas estão ali para alimentar pretensões de outrem, como um parente delas ou algum tipo de chefe, razão pela qual possuí-las implica na assunção de um pacote que também incluir aderir às crenças delas.

            Pelo outro lado, não significar dizer que sempre o belo oculta pretensões “maldosas”. Tudo depende das circunstâncias que, por exemplo, cercam o aparecimento das ninfas. Sentir atração por algo ou alguém é sintoma de liberdade. Mas pode ser que o objeto do desejo aspire ao desejante lhe tolher a liberdade.

            E, esse conto das ninfas ilustra cristalinamente a cultura de resultados. O desejo por essas beldades ordinariamente vai além de sua beleza, cobiça sua suposta pureza, seu suposto poder de sedução perante todos, como uma espécie de título. Não é a toa que em várias culturas do mundo as ninfas, em contos míticos, assumem feições belas e juvenis para conquistar a “vítima”, mas caso esse se dê conta que seus encantos escondem uma natureza predadora, então a ninfa se transforma em alguma espécie de demônio frustrado pela não conquista. Em suma, a vítima possui algum poder que é cobiçado por alguma espécie de clã que a ninfa integra, então a ela investe para seduzir a vítima e lhe tomar o poder. Como vemos, essa é a cultura de resultados, pois tanto a vítima ou a ninfa desejam em seu algoz algum poder que ele detém. Vale dizer: não querem tão somente a companhia um do outro, mas sim possuir algum atributo alheio.

            Tal paradigma, o das vontades ocultas, afasta o homem do autarquismo, afasta o homem de ser fim de si mesmo. Por óbvio, no caso das ninfas, se a vítima deslocar sua energia sexual e entregar esse poder para ela, e consequentemente ao seu clã, então, o homem não estará depositando sua energia para si mesmo, mas entregando a outros.

            Não obstante esse mito, nem toda união sexual equivale a tal entrega de poder, esse afastamento do autarquismo. Assim como em todos os aspectos da vida, o obstáculo ao autarquismo não é o afeto, mas sim desejar o afeto, não pelo próprio afeto. O dinheiro também é ilustrativo, e cobiça-lo somente para ter poder, para usar as outras pessoas é como o caso do homem que só quer possuir a pureza das ninfas, olvidando serem seres humanos com vontades. Vejamos, comprar um carro porque se sentiu bem em dirigi-lo é substancialmente diferente de comprar um carro pelo status que ele trará. Tais opções parecem óbvias, mas na prática da história humana o mais comum é o cidadão ser movido não pelos seus próprios sentimentos, mas sim pela quantidade de atenção que terá, ou seja, o cidadão deposita suas expectativas de um futuro melhor na repercussão dos seus atos e não na alegria de agir. Como exemplo cito clichê dos contos gregos, repetido em vários filmes no que tange aos heróis míticos: “Você quer uma vida comum e depois ser esquecido ou prefere que seu nome seja lembrado por toda a eternidade?”. Essa é a tal glória, tão cobiçada desde os primórdios da civilização. Aqui vale tecer outra diferença entre o mundo grego e o atual. Como se sabe, os gregos viviam com uma íntima ligação com seus deuses. Havia deuses da razão, da justiça, dos mortos, dos excluídos. E, os acontecimentos na sociedade eram todos explicados pelas vontades dos deuses. Aqui, fica muito claro como a sociedade grega não defendia valores autárquicos, pois se o homem devia viver em função de uma suposta glória pos-morte, ou de agradar Deuses, então, se o foco de atenção não era si mesmo, mas outras pessoas que estariam em outro mundo, seja no futuro ou no Olimpo, os gregos funcionavam imersos na cultura de resultados.

            No período helênico houve questionamentos sobre esse estilo de vida e as escolas filosóficas da época aprofundaram estudos sobre a ética, com o enfoque de estudar modelos de vida ideais, ou pelo menos atitudes nesse sentido. Mas, nenhuma grande evolução ao que já existia antes foi feita, podendo-se dizer, ao menos, que foi um período onde se debateram questões com mais liberdade e de forma mais organizada. De qualquer forma, Aristóteles, ainda no período pré-helênico já tinha vislumbrado em suas compilações acadêmicas o esboço do que foi aprofundado no helenismo.

            Hoje em dia não é tão diferente no que tange à cultura de resultados. Talvez a maior diferença entre eles e nós, modernos, é que agora não mais nos contentamos em glórias pos-morte. O cidadão brasileiro quer o retorno ou ganho pelas suas atitudes ainda em vida. Ninguém mais se seduz por fama eterna. Hoje o homem quer colher os frutos de fama que eventualmente conquistar ainda em vida. Portanto, a cultura de resultados sobre um futuro pós-morte foi transferida para um futuro ainda em vida. Como se vê, ainda é a cultura de resultados, de ganhos, do toma lá da cá; com a diferença que o grego acreditava em benefícios para depois da morte, quiça, no Hades. Já hoje em dia o homem quer o resultado para em usufruir/consumir/dominar em vida.

            Quanto a religiosidade, deixou de ser questão de clã, ou de polis, para virar crença individual, salvo exceções como Israel, Irã ou Vaticano(considerado como uma pátria apesar de se situar na Itália). Ou seja, pessoas de uma mesma família ou de mesma cidade ou país têm crenças distintas, e, ainda assim, convivem bem com isso.

            Esse avanço, o da liberdade de crença religiosa em muito contribui ao autarquismo porquanto abre as portas da transmudação da realidade em substituição à cultura de resultados. Hoje em dia a psicologia se encarrega de cuidar dos aspectos que antes podiam se considerados como magia ou vidas passadas, de maneira que se franqueia ao homem o poder de mudar sua vida, através da compreensão de que somos responsáveis pelos nossos atos. Isto é a psicologia: entender que o que acontece no mundo é causado pelo observador, não havendo, portanto, espaço para atribuir a causa dos fatos aos Deuses ou algo imutável como uma limitação imposta por explicação espírita, como um encosto ou uma cobrança em razão de falhas em vidas passadas.

            Daí, posso concluir esse tópico com a seguinte proposição: Questionar o funcionamento da sociedade é sintoma de autarquismo? Por certo quem não sabe que há vida além da manada não questionará ela! Mas, questionar a manada e continuar nela vale a pena? É autarquismo? Muitas vezes, quiça quase todas, os padrões estéticos das manadas só se justificam de uma maneira. E, tentar alterá-lo além de sacrificante pode ser inútil. Então esse conflito ou embate, ou em outras palavras, essa relação custo benefício será aprofundada no último tópico.

4.      Autarquismo na Grécia antiga. Caso Cálicles X Sócrates.

            O grego iniciou o processo da polis após o início da escrita. A pólis foi uma novidade ao modelo anterior, o das monarquias clássicas, e sua grande novidade foi a transferência de poder dos clãs para o governo da polis.

            Ocorre que essa mudança, a qual aparentemente só teria vantagens frente ao modelo anterior, não se mostrou bem sucedida em vários aspectos, como por exemplo a condenação equivocada de seus cidadãos, ou os lixões que se formaram dentro/próximos às cidades, ou seu maior fracasso, as guerras entre as cidades.       

            Sobre o prisma do autarquismo, o início da polis complexificou sua análise. Antes, a vala que separaria uma atitude autárquica ou não seria pautada pela visão do monarca, ou seja, se seu reino estaria atendendo as suas vontades. Já na polis o governo é do povo, daqueles considerados cidadãos. Então, o rei, soberano de seu clã, cedeu o poder para algo maior que ele, a polis. Portanto, se antes o autarquismo se resumia ao monarca atingir todas as suas potencialidades perante seu reino, já na polis o autarquismo se deslocou na capacidade do homem de atingir todas as suas potencialidades na qualidade de cidadão.

            Antes, o parâmetro era considerando se todas as pretensões do monarca, na qualidade de administrador de seu clã, estavam sendo atendidas. Depois, o parâmetro passou a ser se o homem teria alcance sobre todos os seus interesses perante sua cidade. É isto que se exprime da seguinte passagem de Aristóteles: “é evidente que, como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não está submetido a outros...”.[10].

            Isto significa que o homem autárquico da polis perdeu sob vários aspectos sua capacidade de integrar/impor suas potencialidades, pois como ser doméstico de sua cidade passou a ter outros limites além da visão de mundo do seu povo local. Isto porque a polis quando se consolidou deixou de ser somente um ajuntamento de cidadãos para ser também um polo cultural da região. É que assim como ocorre hoje com as cidades capitais/centrais em relação às periféricas, no nascimento da pólis ela passou a ser uma espécie de centro cultural não só de seus moradores, mas também de todos os clãs das redondezas. Então, desta maneira, o homem teve sua visão de autarquia alterada pelo contato com as demais culturais, doravante chamado de choque cultural.

            Não é a toa que o choque cultural é tido por vários especialistas como um dos principais fatores para o desenvolvimento da filosofia na Grécia antiga. Mas, o que venho dizendo nesse capítulo até agora são premissas para se abordar a seguinte questão: teria o estilo de vida da polis suprimido/mutilado/bloqueado valores humanos autárquicos?

Creio que a resposta seja sim, e o motivo não é pela domesticalização do homem, ou, em outras palavras, a rejeição do herói, do símbolo do guerreio impiedoso e sua troca pelo homem do diálogo, pelos debates coletivos. A polis bloqueou valores autárquicos em seu cidadão ao criar valores morais, ou como se é dito hodiernamente: a necessidade de respeito ao politicamente correto.

            O politicamente correto é um atentado ao homem livre, na medida em que ele não pode se expressar senão dentro daquele padrão socialmente aceito. Mas, então, haveria uma incompatibilidade entre o homem autárquico e a polis? Provavelmente sim, ao menos no que tange a polis grega porquanto tal sociedade tinha regras morais rígidas.

            Paralelamente a isto ocorriam festas além do politicamente correto, como a dedicada a Dionísio ou, ainda, o teatro. Ocorre que eram aspectos excepcionais que só serviriam para comprovar a regra de que o convívio em uma polis exige normas de condutas rígidas pautadas por regras morais.

            Portanto, temos um panorama bastante paradoxal. Por certo, a vida numa polis tem vantagens e desvantagens, assim como a vida em um centro periférico. No entanto, para que o homem busque a autarquia a polis que ele deverá participar há de ser a mais plural possível, ou seja, sem uma religião oficial, ou um modelo de casamento, sem estratificação social de ordem familiar ou profissional. Então, a Grécia antiga não atendia a todos esses requisitos. Quanto às crenças a polis grega herdou os mitos antigos como uma espécie espiritualidade. Quanto a estratificação social, existia divisão entre escravos e cidadãos; e entre homens e mulheres.

            Passando ao diálogo Górgias na parte da conversa entre Cálicles e Sócrates vale analisar trecho bastante ilustrativo sobre o tema em tratamento:

Cálicles — Já o disse: os que entendem dos negócios públicos e são corajosos. A esses é que compete governar as cidades, mandando a justiça que tenham mais do que os outros, os governantes mais do que os governados.

Sócrates — E com relação a eles próprios, amigo: são governantes ou governados?

Cálicles — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Digo que cada um deve comandar a si mesmo. Ou não haverá necessidade de  ninguém comandar-se a si mesmo, mas apenas aos outros?

Cálicles — Que entendes por comandar a si mesmo?

            Como se vê, este é um raro trecho revelador de um raciocínio embrionário que justifique a crença de separação entre o ser e o ambiente que vive. Ou mais precisamente dizendo, uma crença que reconheça a possibilidade que mudanças internas são aptas a causar reflexos no meio.

            É que os gregos não acreditavam em uma força interior que haveria de ser resolvida por si só. Para eles todas as batalhas teriam de ser travadas na sociedade.

            Este embate esbarrou nos limites da imanência e chegaram a “chutar as paredes” de seus contornos como quem quer enxergar mais adiante. No entanto, nem o filósofo Sócrates ou seu alter ego sofista Cálicles demonstraram compreensão da existência de uma própria força interior[11].

            É o que transparece da resposta do filósofo:

Sócrates — Não se trata de nada abstruso; a esse respeito penso como todo o mundo: ser temperante e dono de si mesmo, e dominar em si próprio os prazeres e os apetites.

Cálicles — Como és engraçadinho! Aos simplórios é que dás o nome de temperantes?

Sócrates — Como assim? Não há quem não perceba que não foi isso que eu disse.

            “Ser dono de si mesmo” é uma frase que poderia remeter ao homem que se auto afirma em sua existência, segundos conceitos de Nietzsche[12]. Mas não foi isto que Sócrates quis dizer. Seu raciocínio não caminha no sentido do desenvolvimento do Deus interior, ou seja, do autoconhecimento capaz de conduzir à superação.

            Sócrates defendeu que autocontrole é manter o hedonismo domado, ou seja, não alcançou o homem como fonte sua força, seu conteúdo psíquico.

Por sua vez segue transcrição da passagem mais bela que se tem registro dos textos antigos:

Cálicles — Foi isso, precisamente, Sócrates. Pois como poderá ser feliz quem for escravo do que quer que seja? O belo e justo por natureza, digo-o sem o menor constrangimento, é que quem quiser viver de verdade, longe de reprimir os apetites, terá de permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no auge, ser capaz de alimentá-los com denodo e inteligência e de satisfazer a todos eles à medida que se forem manifestando. Mas isso, justamente, segundo penso, é que não é para toda a gente; eis porque a maioria dos homens censura as pessoas capazes de assim viver, por se envergonharem da própria debilidade, que procuram esconder, e qualificam de feia a intemperança, para escravizarem, conforme disse há pouco, as pessoas bem-dotadas por natureza. Sendo incapazes de satisfazerem suficientemente suas paixões, elogiam a temperança e a justiça com base em sua própria pusilanimidade. Pois para os que nasceram filhos de reis, ou que por natureza sejam capazes de conquistar algum império ou o poder e qualquer domínio: haverá nada mais vergonhoso e prejudicial do que a temperança para semelhantes indivíduos? Tendo a possibilidade de gozar de todos os bens, sem que ninguém se lhes atravesse no caminho, iriam impor a si mesmos um déspota, a saber, a lei da maioria, e o falatório dos outros, e as censuras? Quão infelizes não se tornariam, pelo fato mesmo da beleza da justiça e da temperança, se não pudessem dar mais aos amigos do que aos inimigos, e isso apesar de serem donos de suas próprias cidades? O certo, Sócrates, é que a verdade que tu presumes procurar é simplesmente isto: o luxo, a intemperança e a liberdade, quando devidamente amparados, é que constituem ao certo a virtude e a felicidade. Tudo o mais, todos esses enfeites e convenções contrárias à natureza, não passam de palavrório sem valor..

            Infelizmente, a contestação que se seguiu de Sócrates foi evasiva. Ao que pareceu deste discurso é que o alter ego foi além da “locomotiva”.

            A primeira parte do parágrafo é a exata premissa de quem quer desenvolver o autarquismo: “que quem quiser viver ao máximo, longe de reprimir os apetites, terá de permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no auge, ser capaz de alimentá-los com denodo e inteligência e de satisfazer a todos eles à medida que se forem manifestando.”.

            Esse é o caminho para a autoafirmação através de potencializar a força interior.

            Mas, é uma pena que não foi isto que Cálicles quis dizer. Sua premissa é certeira, mas sua conclusão gira em torno da manipulação do ambiente em seu favor. Ou seja, Cálicles pretende ser livre relativamente ao ambiente que vive.

            Enfim, ele quer dominar a sociedade segundo sua conveniência. Não pretende desabrochar sua força interior para que através do conhecimento dela expandir sua sensibilidade em favor de sua liberdade. Pelo contrário, ele quer ter poder para agraciar os amigos, como ele mesmo disse, e assim poder ser reverenciado por eles em um ciclo vicioso que pode trazer certo “conforto para a alma”, mas que na realidade está afastando ele dele mesmo, ou seja, atropelando uma visão autárquica.

Aqui está clara a diferença entre a filosofia antiga e a contemporânea: A liberdade ao grego é relativa, ou seja, não ser dominado por outros homens, e se for o caso impor a sua força quando necessário ou prazeroso.

            Já a liberdade na filosofia que se desenvolveu após a Grécia antiga[13] é outra: desabrochar a psique para através de seu autocontrole/sensibilidade se alcançar a domínio de si mesmo.

            Como se vê, o grego era cego além dos limites da imanência.

            Fazendo uma comparação do grego antigo com o homem moderno, é viável se dizer que o autoconhecimento de um grego perante a realidade não passaria de um feto perante a sua mãe, ou seja, totalmente imanente ao ambiente e com todos os sinais da autêntica liberdade indiretos e imprecisos.

            Por fim, acerca do estágio ideal apontado por Cálicles: Virtude e felicidade, baseados no hedonismo, luxo e liberdade; são expressões de uma busca que em última análise não passam de valores efêmeros, conforme foi descrito por Sócrates em longas falas no diálogo sob análise.

            Sentimentos de integração ou prazer, ainda que admitidos como objeto da vida não passam de consequências cujas causas não são passíveis de debates ante seu caráter pessoal, ou seja, diferente a cada indivíduo.

            Mesmo que se admitisse uma vida hedonista, cercada de amor, como modelo, os caminhos para se atingi-la seriam diferentes para cada ser, razão pela qual qualquer tentativa de defini-la não se insere no campo do debate das ideias, por serem questões resolvidas no caso concreto e em caráter individual, não valendo para uma pessoa a causa que provocou prazer a outrem. Talvez, a sensação mais próxima de hedonismo coletivo seria o uso de drogas, mas, como se sabe, mesmo quando se usa drogas que causam sensação de prazer há de se ter temperança, para não se acabar em uma clínica e ser privado delas.

            Em suma, temperança e hedonismo são duas faces da mesma moeda, como a vontade de comer e a necessidade de parar e refletir até que ponto a sensação causada é agradável.

5.      Conclusão. Autarquismo na nova era.

            Essa singela monografia de conclusão de especialização em filosofia seria muito pretensiosa se taxasse exatamente o que é a autarquia ou pretendesse relacionar padrões autárquicos fechados.

            Quiça, o máximo que um texto sobre autarquismo possa fazer é um nilismo passivo, ou seja, simplesmente “atacar” gestos cotidianos incompatíveis com pretensões autárquicas. Dizer, afirmar, cerrar o autarquismo ou eventual estilo de vida dele derivado provavelmente seria incompatível com ele próprio, como Heráclito[14] disse sobre a água do rio que nunca é a mesma, em analogia a vida. O que hoje pode atender aos interesses do homem amanha pode ser diferente e não há como afastar o referencial do observador, daquele vivente.

            Afastar o referencial do observador é ignorar no homem aquilo que ele tem de melhor: sua criatividade, sua capacidade de inventar, tornando o ambiente em que vive mais adaptável a si. E, esse referencial, essa ligação entre o homem e o ambiente somente pode ser aferida no caso concreto, no lugar e no momento que o homem está desejando, ansiando por algo.

            Do que adiantaria uma bela casa em um deserto? A Primeira lição que o homem tem no mundo é que não há como se desconectar dele. No ventre é conectado a mãe. No nascimento é conectado pela respiração, assim como uma casa tem as suas conexões de água, esgoto, luz e etc.

            Ainda que se faça uma casa mais independente, com uma nascente própria, eletricidade solar e etc, ainda assim meio externo estará contribuindo com o abastecimento da casa. O homem é igual, um ser em total conexão com seu ambiente e sua capacidade de melhorá-lo é a melhor definição de uma atitude autárquica.

            É que jamais essa monografia poderia pretender dizer que o autarquismo é uma atitude estática até porque nada estático sobrevive nesse mundo. Então, o autarquismo talvez possa ter como melhor definição um “estilo de vida”. Isto significa que viver em função de si mesmo é antes de mais nada a compreensão que isto é impossível. Esse mundo é uma interconexão e ultrapassar esse panorama faria o mundo perder qualquer sentido. O que se tem de concreto é que o meio/realidade é reflexo do vivente, do observador e escolher pela atitude autárquica é a postura mais corajosa/íntegra que o homem pode empenhar no mundo.

            Conforme descrito em parágrafos acima cumpre esclarecer que o homem adaptar o ambiente a si, como é o caso do autarquismo, nada tem a ver com o darwinismo de que os fortes sobrevivem, pois se adaptam melhor ao ambiente. Quiça a máxima darwiniana valha, mas somente para os seres irracionais, não para o homem e a grande revelação disso é como a sociedade humana altera a área onde está. Não é porque a vida existiu como Darwin propôs durante bilhões de anos, que após a existência do homem a regra mude. E está claro que o homem tem o poder de transformar o ambiente como nunca visto antes e a prova disso é a preocupação com a ecologia, seja para se garantir um ambiente belo, em plena integração com recursos úteis ao homem, seja para evitar que a utilização em larga escala de bens de consumo possam comprometer a saúde de uma região ou de todo o planeta, como é o caso do suposto aquecimento global e suas consequências.

            Ou em outras palavras, não pretendo dizer que toda a evolução na vida na terra tenderia ao homem de maneira que qualquer histórico nesse sentido fosse irrelevante. Não diria isso, pois compreender o passado é útil para um futuro livre.

            Ocorre que aos olhos do autarquismo adaptar-se ao meio como expõe o darwinismo é um erro. Não cabe ao homem autárquico se encaixar onde houver espaço. Cabe ao homem autárquico se encaixar no espaço que ele achar razoável e enquanto esse espaço não estiver em seu caminho aguardar até que ele apareça. Lado outro, para o darwinismo não há margem para essa seleção por parte do homem, já que a “seleção é natural”. Tal expressão que se eternizou no estudo da evolução das espécies implica numa necessidade de adequação ao meio, sob pena de não ser aceito por ele e daí ser ultrapassado pelo seu trem inescapável, o da seleção natural.

            Em suma, reduzir a capacidade cerebral humano às leis da selva é falácia. Não cabe ao homem justificar a necessidade de abatedouros de animais porque seus ancestrais os caçavam. Da mesma maneira que não há razão para alguém ter medo de uma pessoa maior da mesma maneira que zebras tem medo de leões. O cérebro humano  deve ter esta compreensão para que suas atitude não sejam limitadas por instintos antigos sem validade para sua realidade presente. O autarquismo é por excelência uma superação. Essa é sua principal característica: superar o que não mais lhe interessa. Obedecer somente a si mesmo tem um caríssimo preço: o da ausência de comparsas ou conforme xingamento popular “baba-ovos”.

            Ser autárquico não significa ser solitário, mas significa abrir mão de certos tipos de companhia. Não pode o homem autárquico se cercar de comparsas, de pessoas que a ele se aglutinam para dar algum tipo de consolo amalhoado, dando incentivo a tomar atitudes que sozinho não teria coragem. Nem tão pouco pode se cercar de pessoas que o estão apoiando em razão de interesses espúrios, como medo ou necessidades. Ao homem autárquico não é franqueado o direito de se divertir vendo a desgraça alheia. Essa infelizmente é a regra da sociedade humana desde seus primórdios: Se agraciar vendo que o próximo está em condições piores que a própria. Mas, ao autarquismo não vale esse tipo de comparação, sob pena, em última análise, de haver uma espécie de conformação á hipótese de seleção natural. O homem autárquico não está competindo, ele está descobrindo o mundo, donde disputas sociais ainda que eventualmente bastante contagiantes em nada contribuirão para uma visão mais ampliada de mundo/de padrão estético. Disputar é uma alegria que se insere no campo da falta de confiança, da carência de autoafirmação que é facilmente exemplificada em uma família com irmãos buscando a atenção dos pais. Nenhuma disputa vai além de uma necessidade de reconhecimento. Quem sabe seu potencial não precisa demonstrar a força que tem. E, o homem autárquico não está atrás de glamour, ele quer se apoderar de todas as forças que lhe interessam e descartar as inúteis. E, ter o título de ser melhor do que alguém ou estar a frente de determinado status são forças totalmente inúteis a quem pretenda que suas atitudes sejam fim para si mesmo, parafraseando o trecho citado em Aristóteles.

            Ser fim para si mesmo exige uma desconstrução intensa até as profundezas de conceitos sociais. Significa ter uma plena visão dos acontecimentos, sendo capaz de perceber a vontade existente em ambos os polos da dialética. Sem essa premissa, a da visão multilateral jamais o homem terá o potencial a ser fim de si mesmo, mas sim estará atendendo ou se submetendo a algum padrão estético já estabelecido.

            Ser autárquico é não se conformar com nenhum padrão estético que não lhe agrade integralmente, ou ainda ir mais além, criar padrões estéticos[15].

            E, o autarquismo tem um íntimo relacionamento com a estética na medida da necessidade de compreensão do “fim para si mesmo”, ou seja, se o homem realmente está funcionando para si ou se está atendendo a algum padrão estético de outrem. Vejamos um caso hipotético bastante trivial, aspecto laborativo. Qual o critério que alguém utiliza para exercer uma profissão? Salário, status, superação paterna? Por certo esses três casos, os mais comuns, são todos padrões estéticos de outrem e não de quem busca a atividade. É que o trabalho é uma função que toma o tempo do homem e por isso deve ser algo que ele se identifique. Para o autarquismo, de nada adianta o homem destinar seu tempo a qualquer função que não se identifique, que não faça parte dele, que não haja uma conexão de vontade íntima, nascendo de dentro dele. Esse é o estético que interesse ao “fim para si mesmo”. Ou, em outras palavras, o homem autárquico deve desejar o que quer mais do que qualquer outra pessoa. O objeto de seu desejo deve derivar de sua vontade mais interior, mais sua, sob pena de simplesmente atender o padrão estético de outra pessoa, grupo, ou até da sociedade como um todo.

            O verdadeiro homem autárquico, aquele que reconhece ser a causa dos acontecimentos, sejam eles bons/agradáveis ou ruins/desagradáveis, compreende que sua vontade deve se sobrepor inclusive a padrões estéticos adotados unanimemente por todos os membros dos locais que ele tenha contato. Isto não significa que ele será melhor que ninguém ou “pisará” em alguém, Isto significa que ele compreende seu próprio padrão estético, e tal ideia é tão forte a ponto de se chocar com o padrão estético de toda uma coletividade e ainda permanecer válido.

            Ainda sobre o padrão estético, oportunamente vale tecer alguns esclarecimentos sobre a tal da “verdade”. O que ela é? Uma versão dos fatos, os próprios fatos, uma ideia sobre algum acontecimento sem possibilidade de revisão? Não há como separar a verdade da relatividade ao observador, razão pela qual o máximo de verdade que o homem é capaz de perceber são os fatos que estejam em pleno acontecimento, em plena pulsão, pois essa é a realidade. E, o padrão estético está diretamente ligado a tal realidade porquanto esse dinamismo é por onde o homem encontra seus limites e daí ou se adequa a padrões estéticos de outrem ou se identifica com sua própria estética. A premissa para compreender a realidade é a mesma ideia inicial das análises psicológicas: aceitar a si próprio. A partir daí o homem pode começar a se dar o luxo de ser autárquico, pois sem confiança em si somente restará confiar/engolir padrões estéticos pré-existentes. Na prática, só se dá ao luxo de ser autárquico aquele que não fala por intermediários ou se qualifica como um. Ou ao menos que se for um intermediário que esteja claro/consciente que é um.

            Cumpre deixar claro que o autarquismo se relaciona com a desconstrução de padrões morais notadamente quando afasta intermediários do seu campo de relações. Vejamos, um garçom pode garantir/atestar o chopp que serve? Um corretor é confiável em dizer ao pretenso vendedor sobre eventuais problemas de um imóvel? Um padre/religioso/mago pode responder por questões transcendentais? Ou na época de Aristóteles: Um sobrenome familiar ou o sobrenome da polis são suficientes para dar o caráter do homem? O filósofo é digno de irrestrita confiança a ponto de ser o natural governante, conforme defendido no diálogo A República? O homem autárquico é por excelência um ser vivente, um homem que encara a vida de frente, sem máscara, títulos ou qualquer tipo de status que o torno digno de uma confiança formal ou protocolar.

            Imagino que o que venho defendendo seja um tanto paradoxal e de fato é. E a razão é simples: o mundo é dinâmico e em última análise o objetivo do autarquismo é deslocar o homem para seu próprio padrão estético. E a cada plus nesse quesito a realidade transmuda junto com o homem. Daí, por exemplo, não haver espaço para atitudes autárquicas, por exemplo, em um local dominado por formalismos. Mas, isto não significa que não possa haver alguém com pretensões autárquicas naquele ambiente. Ocorre que caso sua visão se amplie a realidade mudará, ou seja, o local deixará de ser tão formal para se tornar mais dinâmico ou então o homem que “evoluiu” irá para outro ambiente onde haja mais dinamismo.

            Nesse ponto a comparação entre a Grécia antiga e o mundo contemporâneo é muito útil a demonstrar a vala que separava atitudes autárquicas naquele mundo e no nosso, ilustrando, assim, como o autarquismo é relativo[16]. É que ainda que alguns mitos gregos sirvam para ilustrar atitudes do cotidiano moderno sua força mística não mais assusta ou seduz o homem moderno a ponto de pautar suas atitudes. Vejamos, os mitos gregos transcendentais, ou seja, os deuses gregos e suas funções, os quais eram questões sociais inquestionáveis; já hoje foram remodelados pelas religiões e todas passíveis de questionamentos. Ou em termos mais concretos: Sócrates foi julgado por não adorar os deuses da Grécia, já hoje é perfeitamente cabível a adoração dos deuses segundo cada religião ou até nenhuma adoração, como o caso do ateísmo. Em suma, o que antes era uma questão de obrigatoriedade cívica, hoje não passa de uma adesão opcional do cidadão.

            Para quem vivesse na Grécia antiga e talvez sonhasse com uma vida de total liberdade, algo como um ideal autárquico, possivelmente iria orientar suas ações no sentido de mimetizar posturas de Zeus, já que ele era uma espécie de imperador do Olimpo, após destronar seu pai Cronos. Hoje, o autarquismo perdeu orientações como essas, tanto que a máxima de Aristóteles de que o homem sábio não é comandado, mas comanda fazia sentido na Grécia antiga, onde o status do cidadão ante a polis determinava sua sorte até em aspectos pessoais. Ocorre que hoje em dia a indagação sobre comando foi deslocado do campo social para o campo psicológico, ou seja, sábio não é quem não é comandado, mas sim quem tem domínio psicológico adequado para as situações que vivencia.



Bibliografia Básica:

NIETZSCHE, Friedrich, Além do bem e do mal, Editora Companhia de Bolso, 2005, São Paulo/SP.

Os Estóicos, Organizador Brad Inwood, Editora Odysseus, 2006, São Paulo/SP.

Fédon, diálogo sobre a alma e morte de Sócrates, Martin Claret, 2007, São Paulo/SP.

BOECHAT, Walter, A Mitopoese da Psique, Editora Vozes, segunda edição, 2008, Petrópolis/RJ.

CAMPBELL, Joseph, Mito e Transformação, Editora Ágora, 2008, São Paulo/SP.

NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, Editora L&PM Pocket, 2009, Porto Alegre/RS.

Apologia de Sócrates. Editora L&PM Pocket, 2009, Porto Alegre/RS.

Os Filósofos e a arte, Organização Rafael Haddock-lobo, Editora Rocco, vários autores, 2010, Rio de Janeiro/RJ.

A República, Editora Martin Claret, segunda edição, 2010, São Paulo/SP.

NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Moral, Editora Companhia de Bolso, 2011, Petrópolis/RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, Vontade de Potência, Editora Vozes, 2011, Petrópolis/RJ.

SÊNECA, Sobre a brevidade da vida, L&PM Pocket, 2011, Porto Alegre/RS.

SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma, L&PM Pocket, 2011, Porto Alegre/RS.

ARISTÓTELES, Metafísica, Edições Loyola, Giovanni Reale, São Paulo. 2011.

ARISTÓTELES, Metafísica, Editora Edipro, São Paulo, segunda edição, 2012.

Versão eletrônica do diálogo platônico “Górgias”, Tradução: Carlos Alberto Nunes

Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão A Acrópolis (Filosofia)Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/.



Bibliografia Complementar:

ARISTÓTELES, Poética, Editora Imprensa Nacional, 2003, Brasília/DF.

O Banquete, Editora L&PM Pocket, 2008, Porto Alegre/RS.

JUNG, Carl Gustav, O livro Vermelho, Editora Vozes, 2010, Petrópolis/ RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, Assim falava Zaratustra, Editora Vozes, 2011, Petrópolis/RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, Editora Martin Claret, 2011, São Paulo/SP.

CAMPBELL, Joseph, O Poder do Mito, Editora Palas Athena, vigésima oitava edição, 2011, São Paulo/SP.

JUNG, Carl Gustav, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, oitava edição, Editora Vozes, 2012, Petrópolis RJ.

LAERTIOS, Diôgenes, Vidas e doutrinas dos filósofos Ilustres, segunda edição, editora UNB, Brasília/DF.



[1] Chegando até agora, como ambos sabemos, estamos aqui não porque somos livres, mas porque não somos livres.
[2] Em sua apologia e no Fédon ele defende/sugere em várias passagens que uma morte digna ou exemplar poderia lhe garantir benesses em uma suposta pós-vida.
[3] Metafísica, Giovanni, volume 2, página 9.
[4] Motor primário seria aquele valor que dá sustentação a todos os outros valores existentes ou conhecidos no mundo.
[5] Não como se conceber obediência sem alteridade, senão não se forma a conexão de submissão.
[6] O Artigo quinto da Constituição diz que todos são iguais.
[7] Segundo a mitologia grega era o Titan que representava o tempo e engolia seus filhos para ter toda a atenção de sua esposa.
[8] Vide a República.
[9] O filósofo conceitua uma superação de si mesmo como um objetivo do homem ideal.
[10] Metafísica, tradução Reale, página 13.
[11] Quando me refiro a força interior é para expressar que o homem é responsável pelos seus atos, ou seja, deus está dentro dele. As premissas psicológicas modernas são nesse sentido.
[12] O filósofo fala em vários de seus livres sobre a necessidade do homem ir além de uma moral social vesga para alcançar um certo poder criativo.
[13] A maior referência  desse novo panorama filosófico é a superação defendida por Nietzsche.
[14] Grego de família monarca que viveu no período de transição entre as monarquias clássicas e a polis de Atenas e hoje é vulgarmente conhecido como Rei que foi morar nas montanhas. Seu legado vai muito além disto.
[15] São os parâmetros que movem o mundo. São o fundamento, a raiz do que vira o feio ou o bonito, a sede ou o saciado, o certo ou errado, o desejado ou repugnante. Estar em seu próprio padrão estético é o estágio ideal do autarquismo, a plena e íntegra adaptação.
[16] Aliás, o único fator absoluto de maneira a ser totalmente confiável nesse mundo é que tudo é relativo, tudo tem alguma espécie de conexão com o observador.