Autarquia desde
Aristóteles.
1.
Introdução
com objetivo da exposição.
2.
Posição
do sábio na sociedade.
3.
Liberdade
X finalidade ou pretensão.
4.
Autarquismo
na Grécia antiga. Caso Cálicles X Sócrates.
5.
Conclusão.
Autarquismo na nova era.
“By
now as we both know; we are here not because we are free, we are here because
we are not free.” Smith para Neo em matrix 2.[1]
1.
Introdução
com objetivo da exposição.
Aristóteles
é tido como um filósofo grego independente, lembrado por sua capacidade
analítica, notada em vários campos do saber, além de ter eternizado
posicionamentos filosóficos ou existenciais de vários pensadores de sua época.
Também consta que foi orientador de Alexandre o Grande, por indicação de seu
pai.
Já
no mundo moderno, a ideia de autarquismo é a premissa básica dos conceitos de
psicologia, na medida em que para se analisar psicologicamente alguém há que
considerá-lo como uma entidade potencialmente plena perante o mundo, ainda que
não esteja exercendo tal plenitude.
A
ideia mais simples, e ao mesmo tempo profunda, do autarquismo pode ser expressa
pela expressão “funcionar para si”. Ocorre que tal funcionamento é o ponto de
alta indagação, tanto que sofreu alteração da época grega até os dias atuais
causando visões autárquicas segundo características sociais. Donde surge a
seguinte indagação: Se o autarquismo significa um funcionar para si como há
espaço para diferentes espécies a depender do tipo de sociedade? Assim é porque
a visão/percepção de mundo do homem é
limitada e suas conexões com o mundo vão variar em função disto. Daí, o
autarquismo ser mais um caminho tortuoso do que uma doutrina fechada. Tortuoso
porque variará de pessoa para pessoa em razão de afetos que cada um possui.
Vale
registrar que além de Aristóteles outros pensadores gregos e escolas
helenísticas também se ativeram no desenvolvimento de teorias sobre o
autarquismo. Sócrates teria sido uma forte inspiração para esses estudiosos, na
medida em que despertou em sua sociedade uma espécie de dissociação entre como Atenas
o via e sua autoimagem, em razão de ter aceitado sua execução por motivos
distintos daqueles que a motivaram. Isto porque de um lado, o lado do polis,
Sócrates merecia execução por negar os valores da polis que participava. Já do
lado do Sócrates[2],
ele acreditou que estaria dando um exemplo ao mundo dos mortos que mesmo diante
da mais alta pena ele manteve sua retidão ética. Ou seja, houve uma dissociação
gritante entre as crenças da sociedade face à de Sócrates.
Então,
a linha mestra do presente trabalho é a pretensão de dissecar a evolução do
autarquismo da Grécia antiga até hoje.
2.
Posição
do Sábio na sociedade.
A
expressão “sábio” é frequentemente utilizada pelos filósofos gregos para
designar o que hoje se aproximaria de um intelectual, de uma pessoa altamente ética,
ou de uma pessoa que teria compreensão das causas universais, ou seja, qualidades
típicas de um filósofo.
Essas
seriam as características encontradas em um filósofo. Mas Aristóteles define
ainda como ele deve se comportar socialmente: “De fato, o sábio não deve ser
comandado mas comandar, nem deve obedecer a outros, mas a ele deve obedecer
quem é menos sábio.”[3].
Inicialmente
cumpre esclarecer que na visão desse autor grego o sábio deve comandar, mas
isto não significa que em sua sociedade o sábio comandava, mas, em sua visão, o
ideal seria que o sábio comandasse.
Pois
bem, mas o que é comandar? Aristóteles não especifica didaticamente, mas
explica que como o sábio conhece as causas mais próximas do “motor primário[4]” do mundo, assim, como ele
teria maior discernimento ou controle sobre o funcionamento da realidade lhe
caberia tomar as decisões no meio social. Como se vê, seria uma questão com
forte marca de comparação: o sábio teria maior responsabilidade social pois
teria maior capacidade para resolver questões do mundo do que as outras pessoas
que também pudessem decidir, e que, portanto, seriam submissas a ele. Esse parece
ser seu raciocínio, mediante leitura sistêmica de outros trechos da metafísica
onde ele faz escalonamentos e aponta associações entre trabalhadores e funções
ou entre técnicas e aprendizados.
Já
analisando isoladamente a frase transcrita, valem algumas críticas: A “obediência”,
segundo Aristóteles, implica que o sábio seja reconhecido[5] como tal pelo meio social,
donde se podem imaginar os seguintes panoramas:
·
Sociedade de castas, na qual a casta mais
elevada, a do filósofo se prestará ao aprendizado das causas mais universais,
motivo pelo qual seus integrantes serão considerados sábios.
·
Sociedade acadêmica, onde os governantes
máximos deverão possuir graus ou títulos acadêmicos que justifiquem serem
conhecedores das causas mais universais.
·
Ditadura, na qual o ditador se auto
intitulará sábio pelas razões “elevadas’ que entender justifiquem a crença da
intelectualidade superior.
·
Empresa, na qual os empregados obedecem o
dono dela.
Essas
quatro distinções são meramente ilustrativas, pois visam encaixar a obediência
dentro dos parâmetros da nossa sociedade. Isto porque ela só faz sentido dentro
de um contexto com o outro, grupo ou
com a sociedade como um todo. Daí,
considerando tal objetividade, a obediência fora do contexto familiar só se
justifica em razão de algum vínculo hierárquico. Ocorre que tal vínculo
hierárquico não implica em total submissão, como exemplo, o dono da empresa não
tem controle sobre a vida marital dos seus empregados, já em sociedade de
castas é comum se encontrar o líder com algum tipo de disposição sobre a vida
sexual de seus liderados, seja diretamente para ele ou então escolha de
nubentes.
Esse
panorama de hierarquia entre as pessoas em razão de uma finalidade técnica
aproxima a sociedade de um mundo mais autárquico, onde o homem terá mais
chances de desenvolver suas potencialidades. Isto porque o respeito à técnica é
em última análise um respeito a alteridade,
respeito ao próximo, ou, em outras palavras, a compreensão de que os
outros também têm vontades, o que,
em última análise, significa o autarquismo, pois o observador está
compreendendo o mundo para a partir daí se adaptar da forma que encontrar mais
agradável.
Atitude
oposta seria uma falta de compreensão do mundo, ou uma compreensão vesga(sem a
alteridade) de maneira que o observador não se adaptaria segundo seus anseios,
mas tentaria se adaptar ao nicho social que ele considerasse mais proveitoso em
razão de status, vantagens ou pseudo proteções. Seria, nesse último caso, o
estilo de vida pautado por pretensões
utilitárias, aquelas de cunho a satisfazer complexos de inferioridade na
tentativa de compensar deficiências. Ocorre que mesmo quando o observador
alcance tais pretensões ele não consegue suprimir/superar sua deficiência. Pelo
contrário, ele perde o eixo de sensibilidade que possui a titulo de ter alguma
vantagem, proteção ou status que o tornaria mais “poderoso” socialmente do que
outras pessoas comparáveis a ele.
Vale
registrar que a comparação é um sinal de fracasso. Quem compara o faz porque
não confia em si, não conhece o autarquismo, ou em casos piores, precisa
encontrar alguém em situação mais infeliz que a própria a justificar dentro de
uma razão vesga a sua existência. Portanto, repito, para ficar cristalinamente
claro, a vontade que o homem tem é o
que demonstra se ele funciona para si ou não; e se há comparações apontam que o
homem está menos atento ao funcionamento do mundo do que deveria. E estar
apartado dessa percepção é fracasso certo na trilha do autarquismo, porquanto
esse caminho não pode ser definido como bom ou ruim, prazeroso ou doloroso,
certo ou errado, tortuosos ou retilíneo. A sua única definição é algo próximo
do sentido de solidão, pois se não for a própria pessoa que desejar o
autarquismo ninguém o colocará nesse sentido. Nesse peculiar uma frase resume
bastante o que ora se defende: “Deseje o que você quer mais do que qualquer
outra pessoa no mundo.”.
Interessante
notar que na Grécia antiga não havia definidamente uma separação entre a vida
pessoal ou profissional, ou seja, o núcleo familiar com extrema densidade era
uma referência quase que intransponível ao seu membro; e fora dela o grego
seria vista segundo a sua função em seu clã ou posteriormente na polis. Daí,
por exemplo, os casamentos somente ocorriam segundo tais critérios. Já hoje em
dia, nubentes podem não ter entre sua união somente seu status familiar ou seu
vínculo com a sociedade.
Portanto,
a compreensão de obediência da Grécia antiga para o mundo atual não é a mesma,
pois os parâmetros de mundo são diferentes. Para o grego, seu nome de família
fazia parte de sua apresentação como indivíduo, já para o mundo atual existe
uma possibilidade de separação pela finalidade,
a garantir que o status familiar não seja levado ao ambiente de trabalho ou
amoroso. Em outras palavras, o mundo de hoje abre a possibilidade ao indivíduo
de ter pelo menos três aspectos de sua vida com funcionamentos separados, o
sexual, o profissional e o familiar. Tal liberdade de enfrentamento perante a
sociedade não se encaixaria na Grécia antiga que somente aceitava o cidadão sob
um aspecto, ou seja, a vida profissional, sexual e familiar deveriam se
misturar em todas as interações da vida do grego.
Em
suma, a autarquia da época grega deve ser remodelada ao padrão estético moderno.
Isto porque o comandante que interessa ao presente estudo é aquele que conhece
suas potencialidades e as administra com boa funcionalidade. Para esse homem
autárquico moderno não há que se falar em ser comandado ou, lado outro, comandar
outrem, como entendeu Aristóteles. Ademais, em nossa sociedade permeada pelo
valor constitucional da isonomia
fica difícil em se conceber algum motivo que justifique alguém vir a possuir
direito de não ser comandado e somente comandar tendo como único motivo a
sapiência. Portanto, comandar e não ser comandado somente “levantando a
bandeira, rótulo, título ou status do saber” poderia ser uma pretensão razoável para os gregos, mas para o mundo
moderno é absurdo sob o crivo da legislação[6]; e de duvidosa
credibilidade sob o ponto de vista moral, pois poucos são os que se conformariam
em serem tidos como ignorantes a ponto de, por essa razão, serem liderados por
alguém que se considere sábio, em uma relação de “mão única” de
educação/comando.
3.
Liberdade
X finalidade ou pretensão.
Viver
em autarquismo é ir além de Cronos[7]. É compreender que no
mundo tudo é mutável e qualquer tentativa de aprisionar algum valor é ato falho. É compreender que a ciência
é limitada e, portanto, indigna de confiança, pois, como se sabe, mais ou menos
confiável é não confiável.
Viver
em autarquismo é se afastar de pretensões que não podem de plano ser expostas,
porque caso não se possa ser sincero, presente no momento, então sequer se poderá
falar na premissa do autarquismo que é a liberdade.
Daí,
devo enveredar pelas desconstruções para poder ser claro, digo utilizar um
pouco do nilismo passivo, em ordem a
“atacar” o estilo de vida humano. Isto porque a ideia das principais religiões
do mundo moderno não se afastou da cultura de resultados: judaísmo,
cristianismo, espiritismo, budismo, todas elas projetam uma pretensão a envolver as condutas que defendem, suas
doutrinas.
Na
Grécia antiga, não era diferente, no período anterior a polis os mitos gregos
defendiam uma vida heroica para que o barqueiro do mundo dos mortos conduzisse
a alma para um belo mundo ou ao menos a uma segura estadia. E no período da
polis defendia-se uma vida de retidão a garantir uma compatibilidade com alguma
ideia de valor superior, como o amor fati dos Estóicos; ou a ideia de
bem de Platão, já que a metafísica desta escola/academia colocava o plano da
realidade concreta como inferior a um suposto “mundo das ideias”, inacessível
ao homem, mas onde ele deveria se inspirar.
Em
relação aos Estóicos, há um ideal de conformação ao destino, mas em conceito de
complexa explicação. Para eles o homem deve aceitar o que de bom ou ruim lhe
acontece e ainda ser grato a tudo. Ocorre que a principal incompatibilidade
dessa elucubração face o autarquismo reside na aceitação ao destino, pois o Estóico
guiará suas atitudes segundo uma suposta retidão
que eles acreditam possa ser aferida, segundo conceitos éticos. Já para o
autarquismo não é possível creditar à ética
pilar de retidão, porquanto ainda que se trate de um belo conceito sua aferição
no plano concreto relativiza-se. O compromisso do autarquismo vai além de
qualquer conceito, inclusive o da ética, pois ainda que o autarquismo, como na
ética, pregue atitudes francas e transparentes, lado outro, o autarquismo
implica numa constante necessidade de autoafirmação a qual pode desaguar em
condutas tidas como antiéticas ou sem retidão, na avaliação dos Estóicos. Em
suma, a ética que os Estóicos tanto estudaram e necessária para uma vida de conformação ao destino é um conceito
que encerra uma finalidade, a de retidão, de vida digna. Porém tal vida digna, aos olhos do autarquismo
encerra um conceito com marca de cultura
de resultados; e que pode impor uma limitação inadequada às atitudes do
homem em autarquismo.
No
que tange ao legado da academia de Atenas, a ideia de bem constante na parábola
da caverna[8] possui várias interpretações.
Aquela mais próxima do autarquismo seria a que o “bem’ simboliza a integração
dos opostos, ou seja, ver o mundo sob vários ângulos, ou melhor ainda, todos os
ângulos possíveis. Por certo, quanto mais visão o homem tiver mais preparado
para a vida ele será. Ocorre que a integração de opostos não implica, por si
só, em autarquismo. Integrar os opostos é sem dúvida sinal de superação, da
melhor superação possível, digna da abordagem de Nietzsche[9] ao tema. Ainda assim, integrar
os opostos no sentido da parábola da caverna exprime uma revelação social e não
uma integração voltada ao “ser fim para si” do autarquismo. Isto porque a busca
de Platão era de uma suposta sabedoria
sobre o meio social, mas tal procura não é a mesma do autarquismo, pois esse
não tem interesse em integrar opostos do mundo. É que aos olhos do autarquismo o
mundo é, de fato, composto de opostos dissociados, mas isso não é problema, até
porque nada se pode fazer com quem está satisfeito ou “empacado” em um dos
polos. Por isso, o foco do homem autárquico não é resolver/integrar opostos,
ainda que se afastar de opostos seja uma trilha natural do autarquismo. A
diferença é sútil em teoria, mas na prática é uma vala gigantesca, pois
concretamente tentar integrar opostos nada tem a ver com respeitar sua
existência, mas se afastar deles.
No
mundo moderno não é substancialmente diferente dos antigos no que tange à
cultura de resultados. A educação familiar ou social modernas continuam
uníssonas a “adestrar” o homem dentro de uma perspectiva sucesso x fracasso,
como se isso pudesse ser aferido culturalmente. Tal educação olvida/ignora uma
premissa muito simples, a da diversidade. Nem todos são obrigados a gostar da
mesma coisa. Nem todos são obrigados a aplaudir ou vaiar uma peça teatral ao
mesmo tempo. O efeito manada, aquele
pelo qual o homem se sente seguro quando todos agem da mesma maneira pode
parecer convidativo em uma fugaz análise, mas é excludente da liberdade, até
porque a manada tende a se volta irascivelmente àquele que escapa de seu
paradigma.
Portanto,
voltando “ao fio da meada”, a cultura de
resultados tolhe a liberdade do homem, na medida em que o aprisiona a
formatações já existentes as quais tem como única finalidade atender à vaidade
de quem delas participa. Isso quer dizer que se alguém desejar o belo pela
simples explicação que ele é considerado belo, caso essa pessoa consiga possuir
tal padrão estético se dará conta que aquela beleza escondia algum padrão
sustentado por pretensões alheias. Temos como exemplo clássico deste desejo
pelo belo recorrendo aos contos míticos das ninfas. Elas são belíssimas e
encantadoras, mas quem as possuir pagará um preço por isto. E, a razão de se
ter que pagar tal preço é de uma clareza meridiana: elas estão ali para
alimentar pretensões de outrem, como um parente delas ou algum tipo de chefe,
razão pela qual possuí-las implica na assunção de um pacote que também incluir
aderir às crenças delas.
Pelo
outro lado, não significar dizer que sempre o belo oculta pretensões “maldosas”.
Tudo depende das circunstâncias que, por exemplo, cercam o aparecimento das
ninfas. Sentir atração por algo ou alguém é sintoma de liberdade. Mas pode ser
que o objeto do desejo aspire ao desejante lhe tolher a liberdade.
E,
esse conto das ninfas ilustra cristalinamente a cultura de resultados. O desejo por essas beldades ordinariamente
vai além de sua beleza, cobiça sua suposta pureza, seu suposto poder de sedução
perante todos, como uma espécie de título. Não é a toa que em várias culturas
do mundo as ninfas, em contos míticos, assumem feições belas e juvenis para
conquistar a “vítima”, mas caso esse se dê conta que seus encantos escondem uma
natureza predadora, então a ninfa se transforma em alguma espécie de demônio
frustrado pela não conquista. Em suma, a vítima possui algum poder que é
cobiçado por alguma espécie de clã que a ninfa integra, então a ela investe
para seduzir a vítima e lhe tomar o poder. Como vemos, essa é a cultura de
resultados, pois tanto a vítima ou a ninfa desejam em seu algoz algum poder que
ele detém. Vale dizer: não querem tão somente a companhia um do outro, mas sim
possuir algum atributo alheio.
Tal
paradigma, o das vontades ocultas,
afasta o homem do autarquismo, afasta o homem de ser fim de si mesmo. Por
óbvio, no caso das ninfas, se a vítima deslocar sua energia sexual e entregar
esse poder para ela, e consequentemente ao seu clã, então, o homem não estará
depositando sua energia para si mesmo, mas entregando a outros.
Não
obstante esse mito, nem toda união sexual equivale a tal entrega de poder, esse
afastamento do autarquismo. Assim como em todos os aspectos da vida, o
obstáculo ao autarquismo não é o afeto, mas sim desejar o afeto, não pelo
próprio afeto. O dinheiro também é ilustrativo, e cobiça-lo somente para ter
poder, para usar as outras pessoas é como o caso do homem que só quer possuir a
pureza das ninfas, olvidando serem seres humanos com vontades. Vejamos, comprar
um carro porque se sentiu bem em dirigi-lo é substancialmente diferente de
comprar um carro pelo status que ele trará. Tais opções parecem óbvias, mas na
prática da história humana o mais comum é o cidadão ser movido não pelos seus
próprios sentimentos, mas sim pela quantidade de atenção que terá, ou seja, o
cidadão deposita suas expectativas de um futuro
melhor na repercussão dos seus atos e não na alegria de agir. Como exemplo
cito clichê dos contos gregos, repetido em vários filmes no que tange aos
heróis míticos: “Você quer uma vida comum e depois ser esquecido ou prefere que
seu nome seja lembrado por toda a eternidade?”. Essa é a tal glória, tão
cobiçada desde os primórdios da civilização. Aqui vale tecer outra diferença
entre o mundo grego e o atual. Como se sabe, os gregos viviam com uma íntima
ligação com seus deuses. Havia deuses da razão, da justiça, dos mortos, dos
excluídos. E, os acontecimentos na sociedade eram todos explicados pelas
vontades dos deuses. Aqui, fica muito claro como a sociedade grega não defendia
valores autárquicos, pois se o homem devia viver em função de uma suposta
glória pos-morte, ou de agradar Deuses, então, se o foco de atenção não era si
mesmo, mas outras pessoas que estariam em outro mundo, seja no futuro ou no
Olimpo, os gregos funcionavam imersos na cultura de resultados.
No
período helênico houve questionamentos sobre esse estilo de vida e as escolas
filosóficas da época aprofundaram estudos sobre a ética, com o enfoque de
estudar modelos de vida ideais, ou pelo menos atitudes nesse sentido. Mas,
nenhuma grande evolução ao que já existia antes foi feita, podendo-se dizer, ao
menos, que foi um período onde se debateram questões com mais liberdade e de
forma mais organizada. De qualquer forma, Aristóteles, ainda no período
pré-helênico já tinha vislumbrado em suas compilações acadêmicas o esboço do
que foi aprofundado no helenismo.
Hoje
em dia não é tão diferente no que tange à cultura
de resultados. Talvez a maior diferença entre eles e nós, modernos, é que
agora não mais nos contentamos em glórias pos-morte. O cidadão brasileiro quer
o retorno ou ganho pelas suas atitudes ainda em vida. Ninguém mais se seduz por
fama eterna. Hoje o homem quer colher os frutos de fama que eventualmente
conquistar ainda em vida. Portanto, a cultura de resultados sobre um futuro
pós-morte foi transferida para um futuro ainda em vida. Como se vê, ainda é a
cultura de resultados, de ganhos, do toma lá da cá; com a diferença que o grego
acreditava em benefícios para depois da morte, quiça, no Hades. Já hoje em dia
o homem quer o resultado para em usufruir/consumir/dominar em vida.
Quanto
a religiosidade, deixou de ser questão de clã, ou de polis, para virar crença
individual, salvo exceções como Israel, Irã ou Vaticano(considerado como uma
pátria apesar de se situar na Itália). Ou seja, pessoas de uma mesma família ou
de mesma cidade ou país têm crenças distintas, e, ainda assim, convivem bem com
isso.
Esse
avanço, o da liberdade de crença religiosa em muito contribui ao autarquismo
porquanto abre as portas da transmudação
da realidade em substituição à cultura
de resultados. Hoje em dia a psicologia se encarrega de cuidar dos aspectos
que antes podiam se considerados como magia ou vidas passadas, de maneira que
se franqueia ao homem o poder de mudar sua vida, através da compreensão de que
somos responsáveis pelos nossos atos. Isto é a psicologia: entender que o que
acontece no mundo é causado pelo observador, não havendo, portanto, espaço para
atribuir a causa dos fatos aos Deuses ou algo imutável como uma limitação
imposta por explicação espírita, como um encosto ou uma cobrança em razão de
falhas em vidas passadas.
Daí,
posso concluir esse tópico com a seguinte proposição: Questionar o
funcionamento da sociedade é sintoma de autarquismo? Por certo quem não sabe
que há vida além da manada não questionará ela! Mas, questionar a manada e
continuar nela vale a pena? É autarquismo? Muitas vezes, quiça quase todas, os
padrões estéticos das manadas só se justificam de uma maneira. E, tentar
alterá-lo além de sacrificante pode ser inútil. Então esse conflito ou embate,
ou em outras palavras, essa relação custo benefício será aprofundada no último
tópico.
4.
Autarquismo
na Grécia antiga. Caso Cálicles X Sócrates.
O
grego iniciou o processo da polis após o início da escrita. A pólis foi uma
novidade ao modelo anterior, o das monarquias clássicas, e sua grande novidade
foi a transferência de poder dos clãs para o governo da polis.
Ocorre
que essa mudança, a qual aparentemente só teria vantagens frente ao modelo
anterior, não se mostrou bem sucedida em vários aspectos, como por exemplo a
condenação equivocada de seus cidadãos, ou os lixões que se formaram dentro/próximos
às cidades, ou seu maior fracasso, as guerras entre as cidades.
Sobre
o prisma do autarquismo, o início da polis complexificou sua análise. Antes, a
vala que separaria uma atitude autárquica ou não seria pautada pela visão do
monarca, ou seja, se seu reino estaria atendendo as suas vontades. Já na polis
o governo é do povo, daqueles considerados cidadãos. Então, o rei, soberano de
seu clã, cedeu o poder para algo maior que ele, a polis. Portanto, se antes o
autarquismo se resumia ao monarca atingir todas as suas potencialidades perante
seu reino, já na polis o autarquismo se deslocou na capacidade do homem de
atingir todas as suas potencialidades na qualidade de cidadão.
Antes,
o parâmetro era considerando se todas as pretensões do monarca, na qualidade de
administrador de seu clã, estavam sendo atendidas. Depois, o parâmetro passou a
ser se o homem teria alcance sobre todos os seus interesses perante sua cidade.
É isto que se exprime da seguinte passagem de Aristóteles: “é evidente que,
como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não está submetido a
outros...”.[10].
Isto
significa que o homem autárquico da polis perdeu sob vários aspectos sua
capacidade de integrar/impor suas potencialidades, pois como ser doméstico de
sua cidade passou a ter outros limites além da visão de mundo do seu povo
local. Isto porque a polis quando se consolidou deixou de ser somente um
ajuntamento de cidadãos para ser também um polo cultural da região. É que assim
como ocorre hoje com as cidades capitais/centrais em relação às periféricas, no
nascimento da pólis ela passou a ser uma espécie de centro cultural não só de
seus moradores, mas também de todos os clãs das redondezas. Então, desta
maneira, o homem teve sua visão de autarquia alterada pelo contato com as
demais culturais, doravante chamado de choque cultural.
Não
é a toa que o choque cultural é tido por vários especialistas como um dos principais
fatores para o desenvolvimento da filosofia na Grécia antiga. Mas, o que venho
dizendo nesse capítulo até agora são premissas para se abordar a seguinte
questão: teria o estilo de vida da polis suprimido/mutilado/bloqueado valores
humanos autárquicos?
Creio que a resposta seja sim, e o
motivo não é pela domesticalização do homem, ou, em outras palavras, a rejeição
do herói, do símbolo do guerreio impiedoso e sua troca pelo homem do diálogo,
pelos debates coletivos. A polis bloqueou valores autárquicos em seu cidadão ao
criar valores morais, ou como se é dito hodiernamente: a necessidade de
respeito ao politicamente correto.
O
politicamente correto é um atentado ao homem livre, na medida em que ele não
pode se expressar senão dentro daquele padrão socialmente aceito. Mas, então,
haveria uma incompatibilidade entre o homem autárquico e a polis? Provavelmente
sim, ao menos no que tange a polis grega porquanto tal sociedade tinha regras
morais rígidas.
Paralelamente
a isto ocorriam festas além do politicamente
correto, como a dedicada a Dionísio ou, ainda, o teatro. Ocorre que eram
aspectos excepcionais que só serviriam para comprovar a regra de que o convívio
em uma polis exige normas de condutas rígidas pautadas por regras morais.
Portanto,
temos um panorama bastante paradoxal. Por certo, a vida numa polis tem
vantagens e desvantagens, assim como a vida em um centro periférico. No
entanto, para que o homem busque a autarquia a polis que ele deverá participar
há de ser a mais plural possível, ou
seja, sem uma religião oficial, ou um modelo de casamento, sem estratificação
social de ordem familiar ou profissional. Então, a Grécia antiga não atendia a
todos esses requisitos. Quanto às crenças a polis grega herdou os mitos antigos
como uma espécie espiritualidade. Quanto a estratificação social, existia
divisão entre escravos e cidadãos; e entre homens e mulheres.
Passando
ao diálogo Górgias na parte da conversa entre Cálicles e Sócrates vale analisar
trecho bastante ilustrativo sobre o tema em tratamento:
Cálicles — Já o disse: os que entendem dos negócios públicos e são
corajosos. A esses é que compete governar as cidades, mandando a justiça que
tenham mais do que os outros, os governantes mais do que os governados.
Sócrates — E com relação a eles próprios, amigo: são governantes
ou governados?
Cálicles — Que queres dizer com isso?
Sócrates — Digo que cada um deve comandar a si mesmo. Ou não
haverá necessidade de ninguém comandar-se
a si mesmo, mas apenas aos outros?
Cálicles — Que entendes por comandar a si mesmo?
Como se vê, este é um raro trecho
revelador de um raciocínio embrionário que justifique a crença de separação
entre o ser e o ambiente que vive. Ou mais precisamente dizendo, uma crença que
reconheça a possibilidade que mudanças internas são aptas a causar reflexos no
meio.
É que os gregos não acreditavam em
uma força interior que haveria de ser resolvida por si só. Para eles todas as
batalhas teriam de ser travadas na sociedade.
Este
embate esbarrou nos limites da imanência e chegaram a “chutar as paredes” de
seus contornos como quem quer enxergar mais adiante. No entanto, nem o filósofo
Sócrates ou seu alter ego sofista Cálicles demonstraram compreensão da existência
de uma própria força interior[11].
É o que
transparece da resposta do filósofo:
Sócrates —
Não se trata de nada abstruso; a esse respeito penso como todo o mundo: ser
temperante e dono de si mesmo, e dominar em si próprio os prazeres e os
apetites.
Cálicles —
Como és engraçadinho! Aos simplórios é que dás o nome de temperantes?
Sócrates —
Como assim? Não há quem não perceba que não foi isso que eu disse.
“Ser
dono de si mesmo” é uma frase que poderia remeter ao homem que se auto afirma
em sua existência, segundos conceitos de Nietzsche[12]. Mas não foi isto que
Sócrates quis dizer. Seu raciocínio não caminha no sentido do desenvolvimento
do Deus interior, ou seja, do autoconhecimento capaz de conduzir à superação.
Sócrates
defendeu que autocontrole é manter o hedonismo domado, ou seja, não alcançou o
homem como fonte sua força, seu conteúdo psíquico.
Por sua vez segue transcrição da
passagem mais bela que se tem registro dos textos antigos:
Cálicles —
Foi isso, precisamente, Sócrates. Pois como poderá ser feliz quem for escravo
do que quer que seja? O belo e justo por natureza, digo-o sem o menor
constrangimento, é que quem quiser viver de verdade, longe de reprimir os
apetites, terá de permitir que se expandam quanto possível, e quando se
encontrarem no auge, ser capaz de alimentá-los com denodo e inteligência e de
satisfazer a todos eles à medida que se forem manifestando. Mas isso,
justamente, segundo penso, é que não é para toda a gente; eis porque a maioria
dos homens censura as pessoas capazes de assim viver, por se envergonharem da
própria debilidade, que procuram esconder, e qualificam de feia a intemperança,
para escravizarem, conforme disse há pouco, as pessoas bem-dotadas por
natureza. Sendo incapazes de satisfazerem suficientemente suas paixões, elogiam
a temperança e a justiça com base em sua própria pusilanimidade. Pois para os
que nasceram filhos de reis, ou que por natureza sejam capazes de conquistar
algum império ou o poder e qualquer domínio: haverá nada mais vergonhoso e prejudicial
do que a temperança para semelhantes indivíduos? Tendo a possibilidade de gozar
de todos os bens, sem que ninguém se lhes atravesse no caminho, iriam impor a
si mesmos um déspota, a saber, a lei da maioria, e o falatório dos outros, e as
censuras? Quão infelizes não se tornariam, pelo fato mesmo da beleza da justiça
e da temperança, se não pudessem dar mais aos amigos do que aos inimigos, e
isso apesar de serem donos de suas próprias cidades? O certo, Sócrates, é que a
verdade que tu presumes procurar é simplesmente isto: o luxo, a intemperança e
a liberdade, quando devidamente amparados, é que constituem ao certo a virtude
e a felicidade. Tudo o mais, todos esses enfeites e convenções contrárias à
natureza, não passam de palavrório sem valor..
Infelizmente,
a contestação que se seguiu de Sócrates foi evasiva. Ao que pareceu deste
discurso é que o alter ego foi além da “locomotiva”.
A
primeira parte do parágrafo é a exata premissa de quem quer desenvolver o
autarquismo: “que quem quiser viver ao máximo, longe de reprimir os apetites, terá de
permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no auge, ser
capaz de alimentá-los com denodo e inteligência e de satisfazer a todos eles à
medida que se forem manifestando.”.
Esse
é o caminho para a autoafirmação através de potencializar a força interior.
Mas,
é uma pena que não foi isto que Cálicles quis dizer. Sua premissa é certeira,
mas sua conclusão gira em torno da manipulação do ambiente em seu favor. Ou
seja, Cálicles pretende ser livre relativamente
ao ambiente que vive.
Enfim,
ele quer dominar a sociedade segundo sua conveniência. Não pretende desabrochar
sua força interior para que através do conhecimento dela expandir sua sensibilidade em favor de sua liberdade. Pelo contrário,
ele quer ter poder para agraciar os amigos, como ele mesmo disse, e assim poder
ser reverenciado por eles em um ciclo vicioso que pode trazer certo “conforto
para a alma”, mas que na realidade está afastando ele dele mesmo, ou seja,
atropelando uma visão autárquica.
Aqui está clara a diferença entre
a filosofia antiga e a contemporânea: A liberdade ao grego é relativa, ou seja,
não ser dominado por outros homens, e se for o caso impor a sua força quando
necessário ou prazeroso.
Já
a liberdade na filosofia que se desenvolveu após a Grécia antiga[13] é outra: desabrochar a
psique para através de seu autocontrole/sensibilidade se alcançar a domínio de
si mesmo.
Como
se vê, o grego era cego além dos limites da imanência.
Fazendo
uma comparação do grego antigo com o homem moderno, é viável se dizer que o
autoconhecimento de um grego perante a realidade não passaria de um feto
perante a sua mãe, ou seja, totalmente imanente ao ambiente e com todos os
sinais da autêntica liberdade indiretos e imprecisos.
Por fim,
acerca do estágio ideal apontado por Cálicles: Virtude e felicidade, baseados
no hedonismo, luxo e liberdade; são expressões de uma busca que em última
análise não passam de valores efêmeros, conforme foi descrito por Sócrates em
longas falas no diálogo sob análise.
Sentimentos
de integração ou prazer, ainda que admitidos como objeto da vida não passam de
consequências cujas causas não são passíveis de debates ante seu caráter
pessoal, ou seja, diferente a cada indivíduo.
Mesmo
que se admitisse uma vida hedonista, cercada de amor, como modelo, os caminhos
para se atingi-la seriam diferentes para cada ser, razão pela qual qualquer
tentativa de defini-la não se insere no campo do debate das ideias, por serem
questões resolvidas no caso concreto e em caráter individual, não valendo para
uma pessoa a causa que provocou prazer a outrem. Talvez, a sensação mais
próxima de hedonismo coletivo seria o uso de drogas, mas, como se sabe, mesmo
quando se usa drogas que causam sensação de prazer há de se ter temperança,
para não se acabar em uma clínica e ser privado delas.
Em suma,
temperança e hedonismo são duas faces da mesma moeda, como a vontade de comer e
a necessidade de parar e refletir até que ponto a sensação causada é agradável.
5.
Conclusão.
Autarquismo na nova era.
Essa
singela monografia de conclusão de especialização em filosofia seria muito
pretensiosa se taxasse exatamente o que é a autarquia ou pretendesse relacionar
padrões autárquicos fechados.
Quiça,
o máximo que um texto sobre autarquismo possa fazer é um nilismo passivo, ou seja, simplesmente “atacar” gestos
cotidianos incompatíveis com pretensões autárquicas. Dizer, afirmar, cerrar o
autarquismo ou eventual estilo de vida dele derivado provavelmente seria
incompatível com ele próprio, como Heráclito[14]
disse sobre a água do rio que nunca é a mesma, em analogia a vida. O que hoje
pode atender aos interesses do homem amanha pode ser diferente e não há como
afastar o referencial do observador, daquele vivente.
Afastar
o referencial do observador é ignorar no homem aquilo que ele tem de melhor:
sua criatividade, sua capacidade de inventar, tornando o ambiente em que vive
mais adaptável a si. E, esse referencial, essa ligação entre o homem e o
ambiente somente pode ser aferida no caso concreto, no lugar e no momento que o
homem está desejando, ansiando por algo.
Do
que adiantaria uma bela casa em um deserto? A Primeira lição que o homem tem no
mundo é que não há como se desconectar dele. No ventre é conectado a mãe. No
nascimento é conectado pela respiração, assim como uma casa tem as suas
conexões de água, esgoto, luz e etc.
Ainda
que se faça uma casa mais independente, com uma nascente própria, eletricidade
solar e etc, ainda assim meio externo estará contribuindo com o abastecimento
da casa. O homem é igual, um ser em total conexão com seu ambiente e sua
capacidade de melhorá-lo é a melhor definição de uma atitude autárquica.
É
que jamais essa monografia poderia pretender dizer que o autarquismo é uma
atitude estática até porque nada estático sobrevive nesse mundo. Então, o
autarquismo talvez possa ter como melhor definição um “estilo de vida”. Isto
significa que viver em função de si mesmo é antes de mais nada a compreensão que isto é impossível.
Esse mundo é uma interconexão e ultrapassar esse panorama faria o mundo perder
qualquer sentido. O que se tem de concreto é que o meio/realidade é reflexo do
vivente, do observador e escolher pela atitude autárquica é a postura mais
corajosa/íntegra que o homem pode empenhar no mundo.
Conforme
descrito em parágrafos acima cumpre esclarecer que o homem adaptar o ambiente a si, como é o caso do autarquismo, nada tem a
ver com o darwinismo de que os fortes sobrevivem, pois se adaptam melhor ao
ambiente. Quiça a máxima darwiniana valha, mas somente para os seres
irracionais, não para o homem e a grande revelação disso é como a sociedade
humana altera a área onde está. Não é porque a vida existiu como Darwin propôs
durante bilhões de anos, que após a existência do homem a regra mude. E está
claro que o homem tem o poder de transformar o ambiente como nunca visto antes
e a prova disso é a preocupação com a ecologia, seja para se garantir um
ambiente belo, em plena integração com recursos úteis ao homem, seja para
evitar que a utilização em larga escala de bens de consumo possam comprometer a
saúde de uma região ou de todo o planeta, como é o caso do suposto aquecimento
global e suas consequências.
Ou
em outras palavras, não pretendo dizer que toda a evolução na vida na terra
tenderia ao homem de maneira que qualquer histórico nesse sentido fosse
irrelevante. Não diria isso, pois compreender o passado é útil para um futuro
livre.
Ocorre
que aos olhos do autarquismo adaptar-se ao meio como expõe o darwinismo é um
erro. Não cabe ao homem autárquico se
encaixar onde houver espaço. Cabe ao homem autárquico se encaixar no espaço
que ele achar razoável e enquanto esse espaço não estiver em seu caminho
aguardar até que ele apareça. Lado outro, para o darwinismo não há margem para
essa seleção por parte do homem, já que a “seleção é natural”. Tal expressão
que se eternizou no estudo da evolução das espécies implica numa necessidade de
adequação ao meio, sob pena de não ser aceito por ele e daí ser ultrapassado
pelo seu trem inescapável, o da seleção natural.
Em
suma, reduzir a capacidade cerebral humano às leis da selva é falácia. Não cabe
ao homem justificar a necessidade de abatedouros de animais porque seus
ancestrais os caçavam. Da mesma maneira que não há razão para alguém ter medo
de uma pessoa maior da mesma maneira que zebras tem medo de leões. O cérebro
humano deve ter esta compreensão para
que suas atitude não sejam limitadas por instintos antigos sem validade para
sua realidade presente. O autarquismo é
por excelência uma superação. Essa é sua principal característica: superar
o que não mais lhe interessa. Obedecer somente a si mesmo tem um caríssimo
preço: o da ausência de comparsas ou conforme xingamento popular “baba-ovos”.
Ser
autárquico não significa ser solitário, mas significa abrir mão de certos tipos
de companhia. Não pode o homem autárquico
se cercar de comparsas, de pessoas que a ele se aglutinam para dar algum tipo
de consolo amalhoado, dando incentivo a tomar atitudes que sozinho não teria
coragem. Nem tão pouco pode se cercar de pessoas que o estão apoiando em razão
de interesses espúrios, como medo ou necessidades. Ao homem autárquico não é franqueado o direito de se divertir
vendo a desgraça alheia. Essa infelizmente é a regra da sociedade humana
desde seus primórdios: Se agraciar vendo que o próximo está em condições piores
que a própria. Mas, ao autarquismo não vale esse tipo de comparação, sob pena, em última análise, de haver uma espécie de
conformação á hipótese de seleção natural. O
homem autárquico não está competindo, ele está descobrindo o mundo, donde
disputas sociais ainda que eventualmente bastante contagiantes em nada
contribuirão para uma visão mais ampliada de mundo/de padrão estético. Disputar
é uma alegria que se insere no campo da falta de confiança, da carência de
autoafirmação que é facilmente exemplificada em uma família com irmãos buscando
a atenção dos pais. Nenhuma disputa vai além de uma necessidade de
reconhecimento. Quem sabe seu potencial não precisa demonstrar a força que tem.
E, o homem autárquico não está atrás de glamour, ele quer se apoderar de todas
as forças que lhe interessam e descartar as inúteis. E, ter o título de ser
melhor do que alguém ou estar a frente de determinado status são forças
totalmente inúteis a quem pretenda que suas
atitudes sejam fim para si mesmo, parafraseando o trecho citado em
Aristóteles.
Ser
fim para si mesmo exige uma desconstrução intensa até as profundezas de
conceitos sociais. Significa ter uma plena visão dos acontecimentos, sendo
capaz de perceber a vontade
existente em ambos os polos da dialética. Sem essa premissa, a da visão multilateral
jamais o homem terá o potencial a ser fim de si mesmo, mas sim estará atendendo
ou se submetendo a algum padrão estético já estabelecido.
Ser
autárquico é não se conformar com nenhum padrão estético que não lhe agrade
integralmente, ou ainda ir mais além, criar padrões estéticos[15].
E,
o autarquismo tem um íntimo relacionamento com a estética na medida da
necessidade de compreensão do “fim para si mesmo”, ou seja, se o homem realmente
está funcionando para si ou se está atendendo a algum padrão estético de
outrem. Vejamos um caso hipotético bastante trivial, aspecto laborativo. Qual o
critério que alguém utiliza para exercer uma profissão? Salário, status,
superação paterna? Por certo esses três casos, os mais comuns, são todos
padrões estéticos de outrem e não de quem busca a atividade. É que o trabalho é
uma função que toma o tempo do homem e por isso deve ser algo que ele se
identifique. Para o autarquismo, de nada adianta o homem destinar seu tempo a
qualquer função que não se identifique, que não faça parte dele, que não haja
uma conexão de vontade íntima, nascendo de dentro dele. Esse é o estético que
interesse ao “fim para si mesmo”. Ou, em outras palavras, o homem autárquico
deve desejar o que quer mais do que qualquer outra pessoa. O objeto de seu
desejo deve derivar de sua vontade mais interior, mais sua, sob pena de
simplesmente atender o padrão estético
de outra pessoa, grupo, ou até da sociedade como um todo.
O
verdadeiro homem autárquico, aquele que reconhece ser a causa dos
acontecimentos, sejam eles bons/agradáveis ou ruins/desagradáveis, compreende que
sua vontade deve se sobrepor
inclusive a padrões estéticos
adotados unanimemente por todos os membros dos locais que ele tenha contato.
Isto não significa que ele será melhor que ninguém ou “pisará” em alguém, Isto
significa que ele compreende seu próprio padrão
estético, e tal ideia é tão forte a ponto de se chocar com o padrão
estético de toda uma coletividade e ainda permanecer válido.
Ainda
sobre o padrão estético, oportunamente vale tecer alguns esclarecimentos sobre
a tal da “verdade”. O que ela é? Uma versão dos fatos, os próprios fatos, uma
ideia sobre algum acontecimento sem possibilidade de revisão? Não há como
separar a verdade da relatividade ao
observador, razão pela qual o máximo de verdade que o homem é capaz de perceber
são os fatos que estejam em pleno acontecimento, em plena pulsão, pois essa é a
realidade. E, o padrão estético está diretamente ligado a tal realidade
porquanto esse dinamismo é por onde
o homem encontra seus limites e daí ou se adequa a padrões estéticos de outrem
ou se identifica com sua própria estética. A premissa para compreender a
realidade é a mesma ideia inicial das análises psicológicas: aceitar a si
próprio. A partir daí o homem pode começar a se dar o luxo de ser autárquico,
pois sem confiança em si somente restará confiar/engolir padrões estéticos pré-existentes. Na prática, só se dá ao luxo de
ser autárquico aquele que não fala por intermediários ou se qualifica como um.
Ou ao menos que se for um intermediário que esteja claro/consciente que é um.
Cumpre
deixar claro que o autarquismo se relaciona com a desconstrução de padrões
morais notadamente quando afasta intermediários do seu campo de relações.
Vejamos, um garçom pode garantir/atestar o chopp que serve? Um corretor é confiável
em dizer ao pretenso vendedor sobre eventuais problemas de um imóvel? Um
padre/religioso/mago pode responder por questões transcendentais? Ou na época de
Aristóteles: Um sobrenome familiar ou o sobrenome da polis são suficientes para
dar o caráter do homem? O filósofo é digno de irrestrita confiança a ponto de
ser o natural governante, conforme defendido no diálogo A República? O homem
autárquico é por excelência um ser vivente, um homem que encara a vida de
frente, sem máscara, títulos ou qualquer tipo de status que o torno digno de
uma confiança formal ou protocolar.
Imagino
que o que venho defendendo seja um tanto paradoxal e de fato é. E a razão é simples:
o mundo é dinâmico e em última
análise o objetivo do autarquismo é deslocar
o homem para seu próprio padrão estético. E a cada plus nesse quesito a
realidade transmuda junto com o homem. Daí, por exemplo, não haver espaço para
atitudes autárquicas, por exemplo, em um local dominado por formalismos. Mas,
isto não significa que não possa haver alguém com pretensões autárquicas naquele
ambiente. Ocorre que caso sua visão se amplie a realidade mudará, ou seja, o
local deixará de ser tão formal para se tornar mais dinâmico ou então o homem
que “evoluiu” irá para outro ambiente onde haja mais dinamismo.
Nesse
ponto a comparação entre a Grécia antiga e o mundo contemporâneo é muito útil a
demonstrar a vala que separava atitudes autárquicas naquele mundo e no nosso,
ilustrando, assim, como o autarquismo é
relativo[16].
É que ainda que alguns mitos gregos sirvam para ilustrar atitudes do cotidiano
moderno sua força mística não mais assusta ou seduz o homem moderno a ponto de
pautar suas atitudes. Vejamos, os mitos gregos transcendentais, ou seja, os
deuses gregos e suas funções, os quais eram questões sociais inquestionáveis;
já hoje foram remodelados pelas religiões e todas passíveis de questionamentos.
Ou em termos mais concretos: Sócrates foi julgado por não adorar os deuses da
Grécia, já hoje é perfeitamente cabível a adoração dos deuses segundo cada religião
ou até nenhuma adoração, como o caso do ateísmo. Em suma, o que antes era uma
questão de obrigatoriedade cívica, hoje não passa de uma adesão opcional do
cidadão.
Para
quem vivesse na Grécia antiga e talvez sonhasse com uma vida de total
liberdade, algo como um ideal autárquico, possivelmente iria orientar suas
ações no sentido de mimetizar posturas de Zeus, já que ele era uma espécie de
imperador do Olimpo, após destronar seu pai Cronos. Hoje, o autarquismo perdeu
orientações como essas, tanto que a máxima de Aristóteles de que o homem sábio
não é comandado, mas comanda fazia sentido na Grécia antiga, onde o status do
cidadão ante a polis determinava sua sorte até em aspectos pessoais. Ocorre que
hoje em dia a indagação sobre comando foi deslocado do campo social para o
campo psicológico, ou seja, sábio não é quem não é comandado, mas sim quem tem
domínio psicológico adequado para as situações que vivencia.
Bibliografia Básica:
NIETZSCHE, Friedrich, Além do bem e do mal, Editora Companhia de Bolso,
2005, São Paulo/SP.
Os Estóicos, Organizador Brad Inwood, Editora Odysseus, 2006, São
Paulo/SP.
Fédon, diálogo sobre a alma e morte de Sócrates, Martin Claret, 2007,
São Paulo/SP.
BOECHAT, Walter, A Mitopoese da Psique, Editora Vozes, segunda edição,
2008, Petrópolis/RJ.
CAMPBELL, Joseph, Mito e Transformação, Editora Ágora, 2008, São
Paulo/SP.
NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, Editora L&PM Pocket,
2009, Porto Alegre/RS.
Apologia de Sócrates. Editora L&PM Pocket, 2009, Porto Alegre/RS.
Os Filósofos e a arte, Organização Rafael Haddock-lobo, Editora Rocco,
vários autores, 2010, Rio de Janeiro/RJ.
A República, Editora Martin Claret, segunda edição, 2010, São Paulo/SP.
NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Moral, Editora Companhia de Bolso,
2011, Petrópolis/RJ.
NIETZSCHE, Friedrich, Vontade de Potência, Editora Vozes, 2011,
Petrópolis/RJ.
SÊNECA, Sobre a brevidade da vida, L&PM Pocket,
2011, Porto Alegre/RS.
SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma, L&PM Pocket,
2011, Porto Alegre/RS.
ARISTÓTELES, Metafísica, Edições Loyola, Giovanni Reale, São Paulo. 2011.
ARISTÓTELES, Metafísica, Editora Edipro, São Paulo, segunda edição,
2012.
Versão
eletrônica do diálogo platônico “Górgias”, Tradução: Carlos Alberto Nunes
Créditos
da digitalização: Membros do grupo de discussão A Acrópolis (Filosofia)Homepage
do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/.
Bibliografia
Complementar:
ARISTÓTELES, Poética, Editora Imprensa Nacional, 2003, Brasília/DF.
O Banquete, Editora L&PM Pocket, 2008, Porto Alegre/RS.
JUNG,
Carl Gustav, O livro Vermelho, Editora Vozes, 2010, Petrópolis/ RJ.
NIETZSCHE, Friedrich, Assim falava Zaratustra, Editora Vozes, 2011,
Petrópolis/RJ.
NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, Editora Martin Claret, 2011, São
Paulo/SP.
CAMPBELL, Joseph, O Poder do Mito, Editora Palas
Athena, vigésima oitava edição, 2011, São Paulo/SP.
JUNG, Carl Gustav, Os arquétipos e o inconsciente
coletivo, oitava edição, Editora Vozes, 2012, Petrópolis RJ.
LAERTIOS, Diôgenes, Vidas e doutrinas dos filósofos
Ilustres, segunda edição, editora UNB, Brasília/DF.
[1]
Chegando até agora, como ambos sabemos, estamos aqui não porque somos livres,
mas porque não somos livres.
[2] Em
sua apologia e no Fédon ele defende/sugere em várias passagens que uma morte
digna ou exemplar poderia lhe garantir benesses em uma suposta pós-vida.
[3]
Metafísica, Giovanni, volume 2, página 9.
[4]
Motor primário seria aquele valor que dá sustentação a todos os outros valores
existentes ou conhecidos no mundo.
[5]
Não como se conceber obediência sem alteridade, senão não se forma a conexão de
submissão.
[6] O
Artigo quinto da Constituição diz que todos são iguais.
[7] Segundo
a mitologia grega era o Titan que representava o tempo e engolia seus filhos
para ter toda a atenção de sua esposa.
[8]
Vide a República.
[9] O
filósofo conceitua uma superação de si mesmo como um objetivo do homem ideal.
[10]
Metafísica, tradução Reale, página 13.
[11]
Quando me refiro a força interior é para expressar que o homem é responsável
pelos seus atos, ou seja, deus está dentro dele. As premissas psicológicas
modernas são nesse sentido.
[12] O
filósofo fala em vários de seus livres sobre a necessidade do homem ir além de
uma moral social vesga para alcançar um certo poder criativo.
[13] A
maior referência desse novo panorama
filosófico é a superação defendida
por Nietzsche.
[14]
Grego de família monarca que viveu no período de transição entre as monarquias
clássicas e a polis de Atenas e hoje é vulgarmente conhecido como Rei que foi
morar nas montanhas. Seu legado vai muito além disto.
[15]
São os
parâmetros que movem o mundo. São o fundamento, a raiz do que vira o feio ou o
bonito, a sede ou o saciado, o certo ou errado, o desejado ou repugnante. Estar
em seu próprio padrão estético é o
estágio ideal do autarquismo, a plena e íntegra adaptação.
[16] Aliás, o único
fator absoluto de maneira a ser totalmente confiável nesse mundo é que tudo é
relativo, tudo tem alguma espécie de conexão com o observador.
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